Ainda a grandeza de Itaipu

July 26, 2013 | Categoria: Energy

Por Antonio Dias Leite

Acompanho a história de Itaipu há mais de quarenta anos. Na qualidade de ministro de Minas e Energia, tive a incumbência de apresentar o Tratado de Itaipu ao Congresso Nacional, no dia 24 de maio de 1973, e atender aos questionamentos feitos por 32 parlamentares. (Diário do Congresso Nacional, secção I, 3.06.73, p. 3743-3750).

Aqui no Valor (14/8/2009), escrevi artigo no qual analisei mais uma reivindicação do governo do Paraguai quanto às bases econômicas do Tratado de 26 de abril de 1973. Antes disso, o governo brasileiro já atendera solicitações recorrentes do Paraguai para que não fossem alterados o texto e o espírito desse documento e que resultou em significativos benefícios para o país vizinho. E agora fomos surpreendidos há pouco tempo com novo e inusitado episódio, originado com o relatório de uma entidade estranha aos dois países. Como sobrevivente, devo analisá-lo.

O estudo em questão, "Aprovechamiento de la Energía Hidroeléctrica del Paraguay para el Desarrollo Económico Sustentable", foi preparado por entidade intitulada Vale Columbia Center on Sustainable International Investment (VCC), ligada ao Earth Institute da Universidade de Columbia, em Nova York, que tem como diretor o economista americano Jeffrey Sachs. O site dessa entidade explica que o trabalho resulta de pedido de aconselhamento feito pelo Ministério das Finanças do Paraguai a respeito da forma de alavancar a sua energia hidrelétrica, com o propósito de desenvolver a respectiva economia de forma sustentável.

A disparidade da demanda de energia exigiu regras relativas à destinação da parte não consumida pelo Paraguai

Parte do estudo, dedicada ao empreendimento da usina hidrelétrica Itaipu Binacional, retoma questionamentos e contém propostas concentradas nas controvérsias da dívida e da tarifa, desprezando ou demonstrando desconhecimento das condições prevalecentes à época em que foram discutidas as bases originais do Tratado de 1973, bem como as vicissitudes econômicas e financeiras do mundo real nos últimos quarenta anos. Essa parte do estudo, que mais parece um exercício intelectual do que uma contribuição realista, já foi examinada e criticada por vários conhecedores de Itaipu, inclusive pela própria direção da Binacional, por meio de comentários enviados à VCC, no prazo por ela estipulado, 15 de julho. A história é longa e não é simples.

Retornando no tempo. Procurava-se entendimento entre dois países soberanos, detentores de recurso natural compartilhado, que haveriam de ser tratados como iguais. Não obstante, era impossível deixar de reconhecer as disparidades no tocante à experiência na condução de empreendimentos de grande vulto; ao tamanho da demanda por eletricidade e quanto à capacidade de assumir responsabilidades financeiras na construção da maior hidrelétrica do mundo. Na ocasião, o Brasil tinha dimensão econômica muitas vezes maior que a do Paraguai. Essas condições foram determinantes na construção de um formato institucional e um arcabouço jurídico originais. Assim, Itaipu constituiu-se em um empreendimento energético singular, que transformou o Paraguai no único país do mundo a ter suprimento de eletricidade assegurado no longo prazo, sem investir recurso próprio algum.

À época do Tratado, a disparidade financeira foi contornada mediante constituição de um capital mínimo, quase simbólico, de modo que o Paraguai tivesse condições para integralizá-lo. O investimento foi realizado com empréstimos garantidos pelo Tesouro Nacional brasileiro. A viabilidade da contratação desses financiamentos no exterior se sustentou no compromisso da aquisição, conjunta ou separadamente, do total da potência instalada pelos dois países.

A disparidade da demanda de energia exigiu o estabelecimento de regras relativas à destinação da parte que cabia ao Paraguai e que excedesse o próprio consumo. Foi reconhecido o direito de cada uma das partes contratantes de aquisição da energia não utilizada pela outra parte, firmando-se o valor a ser pago pela cessão dessa energia. No contexto do Tratado, a obrigação de compra da totalidade da energia e a preferência de aquisição do excedente paraguaio são inseparáveis. O governo do Paraguai recebe indenização por essa cessão.

Quanto ao sistema tarifário, a ideia central era o reconhecimento do caráter não repetitivo do empreendimento. Tratava-se do equilíbrio econômico de uma única usina hidrelétrica e de sua operação durante longa vida útil previsível. Optou-se pelo regime de caixa. Itaipu teria que equilibrar receitas e desembolsos, nestes últimos compreendidos os custos operacionais; o pagamento às partes contratantes de rendimentos de 12% sobre o pequeno capital social; as amortizações e os encargos financeiros relativos aos empréstimos contraídos; os royalties devidos aos governos pelo uso do recurso natural compartilhado; além de outros itens de menor significado. Ao longo das primeiras décadas de vida as tarifas resultantes foram consideradas ora baratas ora caras, avaliadas pelas partes mediante critérios variados.

Lançado por Jeffrey Sachs em meio à crise política no Paraguai, o relatório, no que diz respeito às suas consequências para o relacionamento Brasil-Paraguai em torno de Itaipu, foi um episódio negativo que é melhor esquecer.

Antonio Dias Leite, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, era ministro de Minas e Energia à época do Tratado de Itaipu.